Entrevista sobre Contabilidade Pública

Um técnico nos bastidores das decisões políticas

O Estado de São Paulo – 31/08/2008

Se não fosse paulista, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, bem que poderia ter recebido o apelido de “mineirinho” do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Avesso a entrevistas e com uma atuação dentro do governo de escassas aparições públicas, Nelson Machado teve recentemente participação decisiva na troca de comando da Receita Federal, no processo de reestruturação do órgão ainda em curso e na proposta de reforma da cobrança de créditos tributários que será enviada ao Congresso Nacional. E agora, na mudança da contabilidade do setor público, anunciada com pompa, na semana passada, pelo presidente Lula no 18º Congresso Brasileiro de Contabilidade.

No encontro, Lula chamou três vezes Nelson Machado de “padrinho” dos contadores. E fez questão de incluir no seu discurso a defesa da necessidade de criar um sistema de avaliação de custos das políticas públicas. O secretário ainda defende a mudança nas contas da Previdência Social, com a separação da aposentadoria rural da urbana. Quer dar mais transparência às renúncias fiscais do governo.

Machado integrou a equipe do tucano Mário Covas, no governo de São Paulo. Trabalhou com Guido Mantega no ministério do Planejamento e foi ministro da Previdência. Deixou o cargo para ocupar o posto de número dois do Ministério da Fazenda.

‘Estamos saindo de uma era fiscalista’

Adriana Fernandes, GRAMADO

O Estado de São Paulo

Nelson Machado: secretário-executivo do Ministério da Fazenda; Machado diz que a nova contabilidade do setor público vai informar a sociedade com base em uma visão econômica

A era de avaliação das contas públicas puramente “fiscalista” está terminando. No seu lugar, entra uma visão mais econômica de longo prazo da saúde financeira e patrimonial do setor público. É o que governo pretende com a decisão de mudar as regras de contabilidade do setor público e as estatísticas fiscais. À frente desse trabalho, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Machado, diz que a nova contabilidade pública e das estatísticas fiscais vai permitir que o Estado seja avaliado nos seus balanços pelos investidores, como já são as empresas.

Machado, que é doutor em contabilidade pela Universidade de São Paulo e recebeu esta semana do presidente Lula o apelido de “padrinho” dos contadores, diz que o governo vai criar um sistema de avaliação de custo das políticas públicas. “Despesa é diferente de custo.” Em entrevista ao Estado, ele explica a diferença.

Por que o governo quer mudar a contabilidade do setor público?

Ainda estamos fortemente amarrados à Lei 4.320, de 1964, que regula a contabilidade pública. Essa lei tem 40 anos e nesse período se evoluiu muito. Hoje temos normas internacionais que se desenvolveram a partir da União Européia. Na contabilidade empresarial, há muito tempo temos um processo de separação da contabilidade para efeito de apresentação de resultados aos acionistas e investidores diferente dos registros para efeito tributário. Há regras tributárias que de alguma forma tolhem a informação mais adequada para os investidores e para os tomadores de decisão.

As mudanças vão precisar de um projeto de lei?

Em algum momento, teremos de fazer um projeto de lei. Mas a Lei 4.320 é abrangente o bastante para fazermos algumas alterações nas normas. Podemos trabalhar sem alterá-la integralmente.

O ministro Mantega fixou prazos para as mudanças?

É preciso ficar claro que uma coisa é a mudança contábil é outra é a alteração das estatísticas fiscais. O ministro tem colocado que temos de alterar o nosso foco, muito voltado para o superávit primário. Podemos fazer isso sem mudança na lei. São duas coisas distintas, mas fazem parte do mesmo grande processo. Não precisamos implantar tudo de uma só vez. Temos um processo de discussão de caminho para as normas de contabilidade e outro para estatísticas fiscais. São dois grupos de trabalho. Não preciso esperar terminar todas as normas para alterar as estatísticas fiscais.

O que muda?

Vamos mudar o foco, muito concentrado no fluxo de caixa (receitas menos despesas), e dar mais ênfase na questão patrimonial. Contabilizar a depreciação de máquinas e equipamentos, por exemplo, a contabilidade pública não faz. Quando se tem foco só no fluxo orçamentário, a preocupação é com saldo de caixa, o resultado primário. Quando se foca patrimônio, a preocupação é com o valor da entidade, da empresa.

Qual a vantagem de focar o patrimônio?

O Estado vai poder ser percebido melhor como uma empresa.Como todas as empresas e entidades, os governos também precisam ser avaliados, é preciso ver se conseguiram atingir os objetivos. Quando olhamos só o fluxo de caixa, temos uma visão de curto prazo e, portanto, tomamos decisões de curto prazo. Já quando olhamos as variações patrimoniais temos uma visão um pouco mais no longo prazo. Quando uma empresa precisa fazer uma ampliação, de um alto-forno, por exemplo, é possível que com o seu fluxo de caixa não tenha dinheiro para comprá-lo. Mas, se a empresa mostra aos investidores quais as suas perspectivas de produção e o seu patrimônio, é possível encontrar investidores. Da mesma maneira é no setor público. Teremos uma visão melhor do Brasil.

O presidente Lula, ao anunciar a mudança no congresso de contabilidade, disse que estava interessado no cálculo de custo das políticas de governo. Como será feito?

É muito importante ter uma contabilidade de custo. Não é possível tomar uma decisão adequada sem ter uma medição adequada das políticas, nas áreas de educação, saúde, transporte… Se não sabemos o custo, é difícil tomar decisões. A contabilidade pública não apura custos, porque custos são diferentes de despesas. Os conceitos são diferentes.

Qual é a diferença?

Vou lhe dar um exemplo com uma campanha de vacinação. Em determinado período, o governo compra e paga um R$ 1 milhão por um milhão de vacinas. No fim do ano, calcula quanto custou a campanha, contabilizando todos os custos, e chega a R$ 1,3 milhão. O problema é que na vacinação foram usadas apenas 500 mil vacinas. O restante ficou no estoque. No ano seguinte, a mesma vacinação custou só R$ 300 mil. Onde foi parar o dinheiro? É que as vacinas já tinham sido compradas. O que se conclui: o administrador de um ano é tão eficiente e o outro não. Mas é que se apurou despesa, e não custo.

Mas parece difícil calcular o custo.

É difícil, mas não é impossível. E é isso que a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) manda fazer há mais dez anos. Os tribunais de contas cobram e não se faz, porque é difícil.

Esse sistema vai permitir avaliar melhor os governantes?

Com esse sistema, analisamos a eficiência do custo daquele bem, daquela política, do programa, vis-à-vis os resultados. Quão eficientemente os recursos foram utilizados. Nesse exemplo da vacinação, podemos ter crucificado o primeiro e endeusado o segundo administrador, quando na realidade pode ser o contrário.

Esse modelo será criado pelo governo?

Nós já temos um grupo de trabalho que está discutindo a implantação de um sistema de avaliação de custo. É bastante trabalhoso. É preciso ganhar o coração e as mentes das pessoas. Mas o apoio do presidente Lula já foi dado.

Com a mudança, acaba a fase “fiscalista” de avaliação das contas públicas?

O termo fiscalista tem várias acepções. Pode-se imaginar do ponto de vista tributário e do ponto de vista apenas da política fiscal, de ver quanto se está recebendo ou gastando. Na contabilidade empresarial, o termo é utilizado quando ela registra os eventos tendo como norte a legislação fiscal. A contabilidade para informação aos investidores e à sociedade será com base em critérios que privilegiam o patrimônio. Nesse sentido, estamos saindo de uma era fiscalista para uma era voltada a uma visão econômica. Vamos caminhar para uma visão de mais longo prazo, levando em conta a política fiscal, a política monetária, o crescimento econômico. Nesse sentido, é menos fiscalista.

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